Vidas ao amanhecer

Quem me conhece de perto sabe que gosto de dormir e acordar cedo. Isso significa que se as condições forem favoráveis, às 22h, 22h30 eu já estarei no primeiro sono, e aproximadamente às 5h estarei me despertando. Na verdade não é exatamente uma questão de gosto (até já tentei mudar), mas uma característica natural como o fato de eu ter olhos castanhos claros. E por ser algo tão natural que acontece sem esforço, acho engraçado quando as pessoas se espantam e me perguntam por que ou como consigo isso. Respondo devolvendo o mesmo questionamento e digo mentalmente: eu é que não entendo como alguém pode dormir tanto e perder a dádiva que é ver o dia amanhecendo.

Gosto de ouvir a melodia dos pássaros, de assistir à mudança de cores e brilhos no céu, da paz que o momento me trás. Para mim, o amanhecer é a única hora do dia em que consigo sentir aquela alegria serena por estar viva; é a única hora do dia em que todas as dores dormem; foi a única hora do dia em que pude descobrir, através de uma conversa inesperada, como é tênue a linha entre a solidão e a felicidade de um ser humano. Aconteceu numa das vezes em que criei coragem para caminhar. Era uma 5h particularmente escura. Vesti uma roupa esportiva amassada, saí e caminhei devagar através do longo corredor do condomínio até minha vista embaçada perceber um homem ao fundo, no portão de saída para o qual estava me dirigindo. Fiquei receosa, forcei a vista e à medida que fui me aproximando foi dando para ver: um pouco mais baixo que eu, corpulento, quarenta e tantos, branco, aloirado e com o típico olhar vago dos que nada anseiam. Era um dos vigias — Geraldo — estava escrito no crachá. “Bom dia!”, “Bom dia!”; “Tudo tranqüilo por aqui?”, “Tudo, mas semana passada apareceu uns rapazes numa carroça. Iam tentar entrar”, “Sério? Como foi isso?” E Geraldo respondeu, e ia puxando papo, e perguntava mais alguma coisa, e falava da sua vida, e toda a sua solidão se revelava e sumia ao mesmo tempo. Não é incrível como uma pessoa pode revelar tanto de si a um desconhecido em tão pouco tempo? Em alguns minutos eu já sabia a sua cidade de origem, Canguaretama; da faculdade dos seus dois filhos; que ele era evangélico; da sua mulher batalhadora; da dureza que é trocar o dia pela madrugada.“Mas você precisa caminhar, né?”, ele interrompe. Eu concordo: “Ah é, tenho que ir!”

E fui caminhar sentindo o quanto uma simples conversa inesperada pode significar para alguém. Especialmente se esse alguém tem por dever estar sempre de pé, em postura ereta, silencioso e alerta ao nada por horas a fio. Quase um robô. Mas o nosso diálogo não deixou dúvidas: ele não trabalhava por amor à profissão, mas por necessidade como a maioria de nós. E que tipo de ser humano sonharia em se tornar um vigia? Enquanto ele protege famílias de classe média a sua própria fica à mercê do perigo. Mas certamente essa foi a melhor escolha que ele pôde fazer dentro de suas possibilidades limitadas. E agora ele precisa ficar de um lado para o outro, mais ou menos das 21h às 7h, na contradição de querer que algo aconteça para que sua solidão seja aplacada e sua profissão ganhe sentido. Um sentido que poderia facilmente ser conseguido se 10% dos que passassem por ele ao menos o cumprimentassem. Mas quantos moradores entram e saem de suas casas sem ao menos perceber que ele está ali? Eles nem imaginam o quanto aprenderiam sobre a vida se de vez em quando se dispusessem a uma conversa despretensiosa com pessoas simples.

Como o condomínio é grande e tem muitos outros vigias fazendo o rodízio de horários, raramente o vejo, mas sempre que isso acontece (à noite ou pela manhã) é notória sua alegria e ânsia por uma conversa. Às vezes passo apressada, às vezes paro por alguns minutos. Uma vez ele me conta como era boa a vida no interior: “Aquilo é que é vida, viu! Tudo na fartura. Na minha casa era assim”, outra vez me diz que tem uma velhinha que perde a noção de tempo quando sai para caminhar: “Ela já saiu de 2h horas, acredita? Aí eu fui lá e disse: minha senhora, a senhora caminha às 5h. Aí ela voltou pra casa para dar a hora”. Não me agüentei e caí na risada. “Não acredito”, eu disse, enquanto pensava seriamente no porquê disso acontecer. Será que ela mora só? E por que não consulta o relógio? Não sei. Mas sei que ela é extremamente solitária ou serenamente feliz — como são todas as vidas já despertas ao amanhecer.

Comentários

  1. Tétis,
    Estava escrito em algum lugar - no "Nariz de Defunto" do Paulo poeta, pra ser exato - que eu encontraria o teu blogue numa hora perdida qualquer.
    Volto pra explorar melhor teu Maktub, moça de Natal.

    Abraço mineiro,
    Pedro Ramúcio.

    ResponderExcluir
  2. Tétis, a invisibilidade para com o semelhante é terrível.
    Cega todos nós.
    Basta apenas um "bom dia" pra mudar o humor ou mesmo a vida de uma pessoa.
    Simplérrimo, mas a cegueira...
    Ótimo tema, minha amiga.
    Bjs.

    ResponderExcluir
  3. Obrigada Pedro! Ficarei feliz por ter mais um amigo interessante por aqui. E já dei uma passadinha no seu blog tb. Abraço

    Pois é Paulo, um cumprimento, uma conversa amigável é capaz de mudar mesmo o dia e o destino de uma pessoa. Mas infelizmente muita gente só enxerga a condição social. Saber crescer com humildade é fundamental. Abção

    ResponderExcluir
  4. Pois é, gosto muito. Quer dizer, é natural! Mas às vezes acordo às 6h tb. Mas é raro. Abraço, anônimo!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas