O estranho menino da passarela





Bêbados, ambulantes, o vendedor de cordéis, assaltos, aquele crime passional, estudantes, vaivém diário. O fluxo que dá vida a passarela que liga o Via Direta ao Natal Shopping faz parte da minha rotina desde que cheguei a Natal, em 2004, e de lá para cá um fato me comoveu mais: um estranho menino pedindo esmolas. Aparentando ter uns 8 anos, magrinho e todo sujo, o menino vestia apenas uma camisa esfarrapada GG de adulto, que cobria todo o seu frágil corpo. Sentado ao chão, sobre um pedaço de papelão, quando alguém passava ele implorava com uma voz aguda e estridente “Uma ajudinhaa, por favor, por favor! Uma ajudinhaa!”. Alguns davam moedas, mas a maioria seguia adiante como se nada tivesse visto.  

Assim também fiz, segui adiante, afinal, “preciso terminar o trabalho disso e daquilo” e explorar uma história fora da pauta acadêmica não me servirá de nada, pensava. Mas duas vezes por dia eu atravessava a passarela. E ele sempre, sempre estava por lá. “Por favorr, moçaaa!”. Tome! E dei minhas primeiras moedas, apressadamente, pensando em como aquela criança foi parar ali, sem pai nem mãe, pedindo esmolas o dia inteiro. Outra coisa também me intrigava: a pele do garoto era excessivamente queimada de sol, muito mesmo. Era marrom escura, ressecada e cheia de sardas, o que o deixava com um aspecto incomumente envelhecido. Aversão, medo e compaixão, tudo ao mesmo tempo, era o que sentia ao vê-lo.

1 mês, 2 meses, 1 ano... e o garoto lá. E ninguém fez nada! Nem mesmo eu... Onde estão seus pais? Onde está o governo? Onde estão as pessoas de bom coração? Quem é e de onde vem esse menino que faça sol, faça chuva permanece na passarela de um ponto central e tradicional da cidade? “Uma ajudinhaa, por favor!”. Tome! E dei uma quantia um pouco maior que para mim não era nada, mas para ele.. Ele me olhou incrédulo e sorriu, eu segui adiante para minhas atividades.
1 ano e meio.. o garoto lá. Voltei a dar moedinhas, mas não sempre, claro. Por semanas eu o ignorava, afinal, não sou sua mãe e tenho os meus próprios problemas (da péssima manicure a cabeleireira que fazia uma escovinha mal feita, por exemplo). O vi de novo. Me envergonhei. Tenho mesmo problemas? É... talvez um pouco de futilidade, respondeu o meu lado sensato. Na verdade você tem tudo e mais um pouco, Deus foi generoso, agora trate de fazer um pouco para modificar a situação que tanto te incomoda. Jornalistas não são metidos a salvadores do mundo?  

Decidi. Vou fazer minha parte: a próxima pauta será ele, que me falará sua idade, onde estão seus pais, eu entrarei em contato com alguma ONG, empresários, prefeitura e um lindo futuro se descortinará. Mas, tenho medo. Estou dizendo, ele não é comum, é estranho de verdade, existe um segredo ali, só quem o viu sabe do que estou falando... seria possível desvendá-lo?
Fui. Iniciei uma conversa informal com o garoto dizendo que estava ali para ajudá-lo, precisava apenas de algumas informações. “Menino, qual a sua idade? Onde estão seus pais?” O menino me olhou assustadíssimo e balançou firme e negativamente a cabeça. Não!  Ele não queria falar de forma alguma! Pensei logo em ameaças que ele poderia estar sofrendo e muitas outras hipóteses tão esquisitas quanto ele. Apesar da curiosidade, entendi e desisti. Podia até ser perigoso. Segui minha vida ignorando-o. 2 anos.. ele lá. E então sumiu por um tempo, talvez meses e depois, ele lá de novo. E então eu sumi por muito tempo e depois, eu lá.  Jamais o abordaria novamente e não o abordei. Até que.. até que um dia, quando voltava naquele último grau de cansaço da Universidade e subindo a ladeirinha da passarela, o vejo novamente.  Foi quando aconteceu algo que até hoje me questiono se é mesmo verdade. O garoto se levanta, fixa o olhar em mim e com uma voz diferente e séria me diz: “Ei, é que eu queria dizer uma coisa”, “Oi? Pode dizer, menino!”, “Eu tenho 68 anos!”, “Como?”, “Eu tenho 68 anos de idade!”. Foi a minha vez de ficar assustada. E com tamanho nó na cabeça e tantos outros problemas... o menino-senhor lá, eu cá, finalizando aquele outro trabalho inadiável.

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