O maior bandido da região
E de repente surgiu uma pauta incomum: “Você terá que cobrir um evento em Felipe Camarão!” Gelei enquanto algo muito sério invadia a minha mente: “F****!”. Gosto de emoção, mas não da emoção de correr o risco de me dar de cara com um
traficante. Será que ouvi direito? Felipe Camarão é um dos bairros mais infernais de Natal, PONTO. Não vou, PONTO. No entanto, tipo, eu não tinha muita escolha... ok, talvez eu
estivesse exagerando no drama, afinal, seria um evento de simulação de guerra entre os alunos de Relações Internacionais, Cruz Vermelha e com forte
presença dos militares da Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti) com seus tanques
de guerra, o que muito me tranquiliza por um momento. Por um momento, eu disse.
Havia um “não vá” insistente dentro de mim e
a ansiedade tomando conta de cada célula,
mas não deixei que meu nervosismo
transparecesse. “Interessante!” – disse para a chefe. “Podexá!”
-Taxista, estou indo para tal lugar em tal bairro, o
senhor sabe chegar até lá?
-Acho que sim...
- O senhor acha? Olha, pelamordedeus, é Felipe Camarão, né!
- É, eu sei.. diz ele temeroso,
- mas não se preocupe, entro em
contato com a central que me explica!
Depois
de muita conversa com a central, e vários “Copiou”? “Copiei”!
depois, chego ao local. Meu coração dispara com o que vejo:
um grupo de pessoas ensanguentadas correndo, chorando e gritando “Ajudaa, por
favor, eles vão nos matar, eles vão
nos matar!” Fico paralisada de medo e logo me sinto uma idiota: a simulação
havia começado. Ufa! Ainda bem! Dou nota 10 para os
participantes pelo grande susto que levei. Nossa! Enfim, a simulação
de guerra segue muito boa, faço meu trabalho (entrevistas
e fotos) e decido que já tenho o suficiente. Agora é
só chamar o táxi e aguardar. Ligo para o
táxi. A simulação termina e rapidamente as
pessoas vão se dispersando, inclusive os tanques de guerra.
Alguns minutos depois... Estou numa pegadinha ou o quê?
Como esse pessoal se dispersou tão rápido
enquanto eu chamava o táxi? Foram abduzidos? Porque foi muito rápido mesmo! A
maioria já foi embora e eu preciso voltar, pois logo, logo
vai escurecer. Aliás, cadê
o meu táxi? E mais... lembrei: estou no meio da rua, no
meio do nada, no meio de uma população desconhecida no bairro de
Felipe Camarão! Bateu um nervosinho! Olho para um lado e para
o outro. Ali, eu vejo, ao menos tem uma escola municipal. Um bom lugar para
ficar enquanto o bendito táxi não
chega. Então vejo uns adolescentes mal encarados caminhando em
minha direção (poderia não ser nada, mas poderia ser...).
Apresso o passo, chego à tal escola e grito para
alguém que está lá
dentro - Por favor, por favor! Uma informação! Quando ele chega, mal o
vejo e digo a verdade: - Estou com receio de ficar aqui sozinha, não
é muito perigoso? Estou apenas esperando o meu táxi
chegar! Se puder ficar um pouco me fazendo companhia...
-
Perigoso?? Aqui? Ahh, não!! Que isso! Por aqui tá
tudo tranquilo! – disse rindo com um certo deboche.
Foi
quando olhei bem para ele e percebi algo de muito errado: o cara tinha rosto e
braços completamente desfigurados e remendados. Tenho
uma impressão muito, muito ruim. Meu coração
acelera novamente. Mas agora não tinha nada de simulação.
Eu estava diante de um cara desfigurado, relativamente jovem, que me respondeu
com ironia sobre a tranquilidade daquela rua em Felipe Camarão.
Baixo a cabeça, respiro fundo e respondo constrangida, mas
fingindo naturalidade:
-
Ah, que bom que é tranquilo...
-
Agora é tranquilo, irmã... faz uma pausa e
completa - Mas eu já fui o maior bandido desta
região!
Dessa
vez eu não poderia dizer “que bom”, “que ótimo”
me dar de cara com aquele que diz ter sido o maior bandido de F.C em pleno F.C.
Então não digo nada. Aliás,
eu digo, só em pensamento, exatamente o que pensei lá
no início “F****!”.
-
Então, irmã. É o seguinte: eu cansei de
descer esta rua tomando bala dos policiais!
-
Maravilha! Pensei...
-
Aprontei muito aí nesse clube, irmã.
(Aponta para o Petyscão). Fiquei nessa por dez
anos. Dez anos nessa vida, irmã. Tá
vendo essas cicatrizes aqui? Isso aqui,
irmã, fui eu mesmo que joguei álcool
e fogo em mim, irmã. Queria morrer, queria me
matar, irmã. Acabar com tudo. Aquilo não
era vida. Neguinho entra nessa achando que vai se dar bem....(e começa
a contar detalhes de como funciona o esquema do tráfico
lá e como funciona no Rio, dizendo que não
tem comparação porque no Rio o esquema é
mil vezes mais organizado e profissional...e que enfim, nesse mundo as pessoas
morrem a troco de nada). Então irmã,
eu queria muito morrer e taquei fogo em mim, depois só
me lembro de acordar no hospital com os irmãos orando por mim. Jesus me
salvou!
-
Amém! digo extremamente aliviada.
-
Hoje estou livre, irmã. Tenho minha família,
minha esposa, meu filho. Tento passar para os meninos do bairro o caminho
correto. Só Jesus salva, irmã! Estou livre, Glória
a Deus!
O
táxi enfim chega. “Graças
a Deus”, penso, porque intuo que ELE realmente me livrou de uma situação
ruim. Afinal, menos mal me esbarrar com o maior “ex-bandido” da região
a me contar seu testemunho de mudança... ainda bem! Por
mais que as religiões – como tudo na vida – tenha
seu lado obscuro (pois falamos de seres humanos complexos e não
de santos), é preciso reconhecer o bem que elas fazem quando realmente
fazem. Neste caso específico, os evangélicos
fizeram e continuam a fazer um bonito trabalho de amenização
do caos. Seria leviano divulgar o contrário. Então
só posso agradecer aos “irmãos”
anônimos que oraram pelo bandido suicida. Se “só
Jesus” salva naquele lugar, que assim seja! Muito bom!
Me
despeço do “irmão” o elogiando pela força
de vontade de retornar ao caminho do bem e o incentivo a continuar pregando “a
palavra de Deus” e passar sua lição de vida aos jovens de
F.P.
-Agora
preciso ir!
-Deus te abençoe, irmã!
-Deus te abençoe!
Comentários
Postar um comentário